Em relação aos valores impressionantes no Nordeste (São Miguel), claro que antes de mais é preciso esperar a confirmação total/oficial por parte do IPMA, pois são algo avassaladores, e numa simples análise das imagens de satélite até parecem suspeitos, não se vendo assim grande "aparato" sobre a zona. De qualquer forma, um pequeno "exercício", claro está, baseado que estamos a supor serem esses valores corretos! (Tendo em conta as imagens que já se viram da zona até atenua algumas dúvidas...)
1) Antes de mais, como disse atrás, nas
imagens de satélite não se vê nada de muito marcante, na verdade a maior parte das células maiores passa ao largo. De qualquer forma, a resolução e produtos disponíveis para a zona não são tão favoráveis quanto isso para uma grande análise infelizmente... Ainda assim, o facto de passarem um pouco a fazer razia ao norte da ilha ajuda a explicar a enorme diferença de valores entre o Nordeste e outras zonas da ilha!
2) A
sinóptica é marcada claramente por uma
pluma de ar tropical extremamente húmido, portanto "fértil" para grandes cargas de água. Cargas estas claro que só ocorrem caso haja algum forçamento para iniciar a convecção e consequente precipitação intensa. Sem esse
trigger, há muito potencial, mas pode nem ocorrer quase precipitação.
3) O
forçamento pode ocorrer por diversos factores (frente, cut-off, convergência, etc..) e diria que neste caso parece ter sido forçamento por convergência nos níveis baixos... Se virmos as cartas em altitude não existe nenhuma bolsa de ar frio a favorecer convecção. Também esta falta de ar frio em altitude explica provavelmente a quase ausência de trovoadas, sendo provavelmente células com muito conteúdo de água nos níveis baixos e médios, mas sem grande extensão vertical e conteúdo de gelo nos níveis altos, etc., aquelas coisas mais complexas relacionadas com descargas.
4) Mesmo nos níveis médios (700hPa) não parece haver grande
forçamento vertical na zona, pelo menos à escala sinóptica. Na verdade até há várias áreas com movimentos descendentes (azuis), reforçando ainda mais a ideia de ter sido essencialmente forçamento em níveis mais baixos.
5) Lá está, existe uma clara faixa estreita e comprida de
convergência nos níveis baixos das isolinhas do vento (onde as setas como que "colidem"). Terá sido nessa linha de convergência que esteve o mecanismo de forçamento para provocar a conveção, o movimento vertical ascendente. Esteve ali situada sempre no limite das zonas norte das ilhas mais afectadas, mais uma vez ajudando a explicar ser um pouco localizado.
Aliás, é curioso comparar a direção do fluxo nos níveis baixos com a direção aparente de deslocamento das células na imagem de satélite. São quase opostos, ou seja, no fundo o sistema estava a deslocar-se lentamente para Leste (guiado pelo fluxo aos 500hPa) mas a origem da conveção forte era o fluxo de direção Sudeste
Noroeste nos níveis baixos.
6) Finalmente,
a orografia, que claro nestes casos nas ilhas tem sempre papel crucial, tal como no famoso e trágico caso da Madeira. Sendo o fluxo nos níveis baixos de Sudeste, acaba por ser quase perpendicular à orientação das serras na parte oriental da ilha de S.Miguel, ou seja, as serras passam a ser uma enorme "parede" onde o fluxo extremamente húmido é forçado a subir, e a "despejar a água".
Juntando os ingredientes:
água precipitável + sinóptica com convergência nos níveis baixos + orografia perpendicular a esse fluxo
... a zona acabou por ficar mesmo no local a montante propício para acumulados enormes.