Já houve muitas evacuações de pessoas sem tanta polémica, o ano passado não houve em Pedrogão, houve depois em Agosto e em Outubro houve muito poucas
Em 1996 ou 1997 eu fui evacuado com mais crianças, acamados e velhos de uma aldeia para uma escola da vila
A resistência é a falta de confiança das pessoas que já ficaram sozinhas no passado
Marmelete. A aldeia que se levantou contra os guardas da GNR
Faz hoje 15 anos, a aldeia de Marmelete, no concelho de Monchique, era engolida por um mar de chamas gigante. Sem o apoio de bombeiros, os habitantes viram-se obrigados a salvar as próprias casas, com o que tinham à mão. Esta semana, a GNR tentou evacuar a povoação, mas o povo juntou-se e fez finca-pé. Ninguém saiu
Há quinze anos era domingo. E a aldeia de Marmelete, no concelho de Monchique, estava engalanada: assinalava-se o dia da festa anual do padroeiro, Santo António. Na noite da véspera, as gentes do povo partiram a pé, em procissão solene, desde a igreja, no centro, até uma pequena capela numa das encostas da povoação. Cumprindo a tradição, pegaram na imagem do santo e trouxeram-na para a aldeia. Mas, no dia seguinte, o ritual de festa seria quebrado. Antes de os habitantes repetirem a procissão para devolver o santo à capela, Marmelete era atingida por uma mão gigante de lume que não se fez anunciar. O incêndio, que já lavrava na Serra de Monchique há quatro dias, embicou em virar na direção da aldeia e, em meia hora, galgou quilómetros e quilómetros de matos e de floresta. Com os bombeiros apanhados desprevenidos, os moradores de Marmelete acharam-se sozinhos. Uns fugiram e seguiram de carro pela estrada nacional que leva a Aljezur, por entre chamas. Mas a maioria ficou, determinada em salvar o casario. E o esforço coletivo resultou: em 2003, arderam todos os pedaços de terra em redor da aldeia, porém as casas escaparam ilesas.
Esta semana, quando a serra de Monchique se voltou a incendiar, os cento e poucos habitantes de Marmelete recordaram o dia em que o santo não voltou à capela. Só que, desta vez, e apesar dos mais de 23 mil hectares ardidos na região nos últimos dias, o fogo poupou a povoação. E nem perto andou.
Ainda assim, na madrugada de quarta-feira, os moradores acordaram no maior sobressalto. João Torrinho, o dono de uma empresa de cereais, foi dos primeiros a ouvir as sirenes, ainda ao longe, do lado da aldeia vizinha de Casais. Eram 4h10 da manhã e tinha-se deitado há pouco, regressado da zona alta da Fóia, onde tinha estado a acompanhar a progressão do incêndio, ao longe.
Nem vinte minutos depois, as sirenes de três carros-patrulha da GNR já estavam na rua principal de Marmelete, a gritar aflitivamente. “Era um barulho completamente ensurdecedor”, descreve José Maria, que poucas horas antes tinha andado a ajudar os bombeiros, também na zona da Fóia, ao volante de uma máquina de rasto.
Chegados ao casario, os guardas entraram por várias artérias da aldeia, de sirenes continuadamente ligadas. Pelo meio, desataram a bater às portas. “Ao murro e ao pontapé”, garante José Maria. Houve quem se assustasse, no entanto, a maioria dos habitantes ficaram simplesmente incrédulos. “Não se via fumo nem fogo nem clarões, rigorosamente nada”, garante João Torrinho. Intrigados, muitos perguntaram aos GNR onde andava, afinal, o lume. “Respostas, zero. Só diziam, de forma rude e autoritária, que era para abandonar imediatamente” a aldeia, continua o morador. Desconfiado, meteu-se no carro com a filha e foi ver onde ardia.
Primeiro, subiu ao cerro do Pico. Nada: as chamas continuavam a lavrar ao longe, na zona da Fóia, praticamente onde andavam a remoer por volta da meia-noite, quando largou a máquina de rasto. Depois, rumou à aldeia vizinha, Casais. Também nada: o fogo consumia Monchique, também ao longe. Diagnóstico: a povoação não estava em risco.
Enquanto isso, na aldeia, a indignação crescia e mais de meia centena de pessoas - praticamente metade dos moradores da aldeia - começavam a juntar-se no adro, a conta-gotas. E foi no adro que os ânimos se exaltaram a sério. Montou-se a discussão e era meia dúzia de guardas contra 50 e tal populares. Houve gritos, desacatos, insultos e muito finca-pé. Os mais velhos insistiam que o povo não corria perigo e que não era possível que houvesse ordens para serem retirados. Outros acrescentavam que mesmo que houvesse risco, jamais deixariam as suas casas, para poderem protegê-las do incêndio. Outros ainda, poucos, quiseram saber para onde deveriam, então, fugir.
“Perguntei a uma militar, já que era para sair, para onde é que era então para ir, e ela respondeu-me que era para seguir na direção de Monchique, enquanto apontava com o dedo na direção de Aljezur. Eles claramente não eram de cá e nem sequer sabiam onde estavam”, conta a dona de uma pequena mercearia.
Como o levantamento popular subia de tom e a população insistia que o fogo andava demasiado longe - e também com alguma exaltação, fruto da lembrança de há 15 anos, em que a povoação só se salvou porque se autoprotegeu -, os guardas decidiram a contactar o comando, para perceber o que haveriam de fazer.
“Pegaram nos rádios, a perguntarem se teríamos razão. Depois conferenciaram e lá acabaram por se ir embora. Diz-se por aí que, com o aperto que levaram, uma militar até chorou ”, assegura um morador que não quer ser identificado com medo de “se meter em trabalhos”.
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