Devo ter muita sorte, ou então só caço com gente como deve ser... Tenho carta de caçador desde os 18 anos e nunca na minha presença vi um cão ser abandonado ou abatido a tiro. De cães com azar posso dizer que vi uns 3 ou 4 perderem-se e vi um morrer atropelado, um ser ferido por um javali (foi suturado pelo próprio dono no meio do mato). Cães afortunados tive dois que encontrei perdidos e trouxe para casa.
Caro MSantos, o que se passa nesta troca de opiniões é que se parte sempre de preconceitos e de sensibilidades pessoais difíceis de conciliar com aquelas dos que estão nos antípodas, por mais que se jure compreender as posições do "lado oposto".
Todos nós (gerações que nasceram a partir dos anos 60) já levámos (regra geral) uma vida regalada (cama, comida e roupa lavada) providenciada pelos papás e pelo Estado Social, somos em grande maioria urbanitas e "sofremos" uma "lavagem ao cérebro" em favor da proteção da natureza logo na primária e na RTP aos fins de semana (lembras-te das prodigiosas séries do Rodriguez de la Fuente? Eu lembro-me bem...).
Antes porém, e nalguns locais mesmo até aos anos 80 e 90, a vida nos espaços rurais era outra, de fome, muita miséria, e da luta diária pela sobrevivência (em alternativa emigrava-se). A caça e a pesca eram em alta cadência (nem se compara com os dias de hoje), muitas vezes de forma ilegal, e a bicharada selvagem levava uma vida também desgraçada (nos anos 60 o javali era uma espécie em perigo, imagine-se!). É só ler os romances de Aquilino Ribeiro ou de Carlos de Oliveira para o perceber perfeitamente; neste contexto, a atividade cinegética faz parte do "código genético" do português e, em muitas regiões (ex. Alentejo) é também uma forma (legal) de resistência contra os todo-poderosos "senhores" das terras, dos terrenos coutados.
Mas o que mais me aflige, neste como noutros assuntos ditos "fracturantes", é ver a quantidade de povo que declama a favor do desenvolvimento rural, contra o despovoamento do interior, em prol das regiões de montanha, etc.,etc., acusam o Estado disto e daquilo, para, no post seguinte, defender a eliminação de atividades que ainda dão alguma animação e dinâmica ao
verdadeiro interior - e não estou a falar de mega fábricas em Mangualde ou de call centers na Covilhã e quejandos, estou a falar da atividade cinegética ordenada, da produção florestal, da pesca, da agricultura moderna, que permeiam o território e alimentam os resistentes que lá permanecem...
Nalgumas "visões" (chamemos-lhes assim) parece que tudo se resolve só com safaris fotográficos, trilhos de "descoberta da natureza", montes forrados a carvalhos (quem é que lá os planta, e os trata?) e turismos de habitação... parece que não há uma consciência clara das centenas ou milhares de aldeias por esse país fora que estão na iminência de pura e simplesmente desaparecer, abandonadas pelos proprietários, derrotadas pelos incêndios sucessivos e invadidas pelas mimosas. Lugares onde a "valorização da biodiversidade" ou da "paisagem" não passam de expressões ocas, próprias para ornamentar "planos estratégicos" disto e daquilo.
Quanto ao resto, defender que os caçadores são criminosos porque, no meio de 100 ou 200 000, há umas dúzias de desequilibrados que não cumprem as leis e regulamentos, está ao mesmo nível de dizer que os condutores de automóveis são todos uns facínoras, só porque todos os anos há uns centos de concidadãos que infringem o Código da Estrada e às vezes até provocam acidentes letais (em que não matam animais selvagens, matam o seu semelhante). E eu estou em crer que os que escrevemos aqui no MeteoPT não somos todos facínoras.
(Declaração de interesses: já cresci dominado pelas teorias da proteção da natureza e os bifes vinham parar-me ao prato sem grande dificuldade. Caçar não vai com a minha maneira de ser, mas sou totalmente contra proibir a caça, que é o corolário (por vezes não assumido) de muitas posições aqui defendidas. Portugal seria um país mais pobre e mais triste sem o conhecimento do meio natural que a caça proporciona, ao mesmo tempo constituindo uma das tradições mais profundas que nos trouxeram até aqui, marcando a identidade nacional - para o melhor e para o pior. E que interessa manter para o futuro - sabe-se lá o que vem por aí na ordem internacional...)