O ciclone de há 70 anos: «na aldeia da ilha Ançã nem destroços restam»
O «barlavento» termina aqui, com esta terceira parte, a evocação dos estragos causados no Algarve pelo ciclone que atingiu o país há 70 anos, no dia 15 de Fevereiro de 1941.
Como seria de prever, o ciclone atingiu fortemente as ilhas barreira da Ria Formosa: «Na ilha da Culatra desapareceram muitas barracas de pescadores, que se dirigiram ao departamento [Marítimo do Sul] a pedir providências. Os marítimos das ilhas perderam os seus barcos e os apoios de pesca. Os ilhéus foram vacinados, devido a terem aparecido doentes atacados de varíola. A barca do porto comum foi parcialmente destruída».
«Há, porém, um facto que sobreleva todos os outros: A destruição da aldeia da ilha Ançã [Ancão – Praia de Faro], da qual nem destroços restam. Ondas gigantescas, de altura inconcebível, invadiram de súbito a pequena língua de terra. Nada podia resistir-lhes. Casas, redes, pequenas embarcações, o arraial da armação da pesca de atum «Cabo de Santa Maria» - tudo foi reduzido a migalhas num abrir e fechar de olhos. E logo outras vagas arrastaram os restos daquilo, que momentos antes, fora uma povoação de gente humilde e laboriosa, agora lançada na mais negra e desoladora das misérias».
Ao todo, mais de cem pessoas, entre homens, mulheres e crianças, foram atingidos pela catástrofe, na hoje designada Praia de Faro.
«Próximo da ilha Ançã e junto do ilhote de Coleiros, a fúria do mar teve um efeito surpreendente: apareceu uma nova barra».
Na Fuzeta, «parte da povoação foi invadida pelo mar. Ficaram inundadas centenas de habitações». «Os prejuízos nas embarcações são elevados. A ria está assoreada, pelo que é impossível o tráfego».
Os pescadores perderam ainda todas as teias de alcatruzes utilizadas na pesca do polvo. Na mesma localidade, tal como em Moncarapacho e Pechão «há milhares de oliveiras derrubadas».
Por sua vez, em Vila Real de Santo António, «os campos sofreram uma razia, não ficando, em muitos pontos, uma árvore de pé. No rio afundaram-se numerosas embarcações, outras ficaram destruídas e ainda outras desapareceram. As canoas dos irmãos Jacinto e José Barão e do Sr. José Marques foram tragadas pelas águas, assim como os respectivos carregamentos de café e açúcar. Um «gasolina» da Empresa de Transportes do Guadiana ficou despedaçado. No local conhecido por Lasareto, as casas velhas ruíram. Abateram telhados e paredes nas fábricas de Sanches e Barroso, Raul Folques, Sales, Ramirez, Aliança e Paródi. (…) Na vila, o tanoeiro António Segura Rodrigues foi projectado de encontro a uma parede sofrendo fractura nos maxilares. (…) Na avenida da Republica o vento levou as guaritas da Guarda-Fiscal».
«Na secretaria da Câmara Municipal, todas as janelas ficaram estilhaçadas. Correram perigo os funcionários e algumas pessoas que ali se encontravam, chegando a esboçar-se o pânico. Embora sem gravidade, há pessoas feridas com os estilhaços dos vidros».
«Por todo o lado há candeeiros de iluminação destruídos, postes telegráficos e telefones derrubados – o que tem impedido as comunicações com o resto da província e nomeadamente a capital – casas destelhadas, empenas caídas e árvores arrancadas. A caminho de Castro Marim o aspecto é ainda mais desolador. Toda a margem de terrenos cultivados alagaram-se, estando completamente inutilizadas as sementeiras de cevada, trigo e fava. A água subindo em verdadeiras cortinas, avança na parte baixa da vizinha cidade espanhola de Ayamonte, inundando-a completamente. Devem ser importantes os estragos ali ocorridos. Na povoação espanhola de Canelas caiu parte do campanário duma igreja».
Na velhíssima cidade de Tavira, «contam-se às dezenas os prédios que sofreram prejuízos. Na fábrica de moagem de J. A. Pacheco, o vento levou grande parte da cobertura, o mesmo sucedendo no armazém contíguo à moagem da firma Araújo Ribeiro & Dias. Na fábrica de conservas Balsense e na casa do salva vidas também abateram os telhados».
Também em Tavira, «o Bairro Jara habitado por gente pobre foi atingido gravemente, havendo moradias que ficaram destelhadas e em ruínas. Na bacia das Quatro Águas uma barca da Companhia de Pescarias Algarve, denominada Moagem, foi ao fundo, carregada de sal. Os batelões da mesma companhia que estavam junto do rio, que corre paralelo à costa foram atingidos pelas vagas, afundando-se. Na ilha de Tavira a água do mar juntou-se à do rio, pondo em sério risco o arraial da armação daquela empresa. A maioria das cabanas existentes na ilha foi levada pela corrente. No campo, milhares de árvores foram destruídas [No sítio das Cabanas, um olival, de que é proprietário o Sr. José Chagas, de cerca de trezentas árvores, só oito ficaram de pé]. Não há comunicações. A camioneta que faz a carreira diária entre a cidade e a vila de Alportel foi atingida por uma árvore».
«No sítio da Fortaleza, junto da armação do atum, o mar abriu nova barra de grande extensão» Na freguesia da Luz, «até a erva foi queimada pelo vento».
Reconstrução e situação atual
Os prejuízos totais na região foram contabilizados, dias depois do ciclone e segundo o «Diário de Notícias», em 50 000 contos (aproximadamente 250 mil euros, mas que, a valores atuais, ascenderiam a mais de 10 milhões de euros). A economia do Algarve ficou fortemente afectada e os mais pobres duramente atingidos, tanto mais que «as sementeiras de fava e ervilha, que constituem uma grande riqueza do Algarve e a base de alimentação das classes menos abastadas nesta quadra, podem considerar-se perdidas».
Mas os algarvios não se detiveram perante tão grande adversidade. Foram vários os gritos de socorro às entidades, emanados através dos jornais, como em Salir: «Centenas de camponeses, olhos rasos de lágrimas procuraram o correspondente do Século e pediram-lhe que, por intermédio do nosso jornal, se solicitassem providências ao Governo».
Até em Lisboa «uma comissão de estudantes algarvios, de várias Faculdades», coordenados por Maria Odete Leonardo, resolveu «recolher donativos para acudir aos seus conterrâneos».
António Graça Mira, contemporâneo aos acontecimentos, recorda ainda os cortejos de ofertas, que se realizaram um pouco por toda a região, bem como o imposto de um tostão, ambos destinados ao auxílio das vítimas.
O Carnaval de 1941, cujos festejos ocorreram a 25 de fevereiro, foi bastante discreto em todo o território. Mas em Loulé e em exceção, o corso saiu à rua, ou não se destinassem as suas receitas a apoiar o funcionamento do Hospital da Misericórdia.
A liderar o processo de restabelecimento do país esteve um algarvio, o louletano Eng. Duarte Pacheco, que à época ocupava o cargo de Ministro das Obras Públicas e Comunicações. O seu empenho e a pronta ação foram meritórios, permitindo normalizar “rapidamente” o país após tão pesada calamidade.
Em Portimão, data desta época a construção do bairro do Pontal, precisamente para alojar as famílias pobres que viram as suas casas e barracas destruídas pela violenta tempestade.
O ciclone marcou duramente a paisagem do Algarve, muitas árvores centenárias desapareceram e hoje dificilmente se imagina, por exemplo, a estrada de Faro a Olhão ladeada de eucaliptos. Interessante é constatar como a economia algarvia se transformou tanto nas últimas décadas.
Atualmente, já não seriam destruídos barcos carregados de esparto, de conservas, ou mesmo de açúcar. A freguesia de Pêra já não abastece Lisboa de favas ou ervilhas, e nem haveria no Algarve chaminés de fábricas de conservas, ou mesmo de cortiça, para derrubar. A produção de amêndoa, à época tão importante na economia regional, é hoje residual.
Mas o quotidiano e os hábitos dos algarvios também se modificaram substancialmente. Em Alte, como em toda a região, já não se cozinha com a água das goteiras, nem as favas e os griséus são a base da alimentação, ou exclusivas desta quadra.
Como se comportariam hoje os prédios da Praia da Rocha perante um ciclone? Ou todos os outros prédios por esse Algarve fora? É algo que devemos equacionar.
Afinal hoje, tal como ontem, não estamos livres dos efeitos de um novo ciclone extra-tropical.
Outras tempestades têm fustigado Portugal e o Algarve nos últimos 70 anos, mas felizmente nenhuma outra atingiu a destruição vivida pelos nossos avós, como a causada pelo ciclone de 15 de Fevereiro de 1941.
Bibliografia: Jornais «O Século» e «Diário de Notícias» de fevereiro de 1941 e Conta de Gerência do Município de Portimão de 1942 (gentilmente cedida pelo Centro de Documentação do Museu de Portimão)
*Investigador de História Local e Regional
4 de Março de 2011 | 23:43
Aurélio Nuno Cabrita*
Fonte: Barlavento Online